A Sala de Estar de Dois Andares
A Irmã Debaixo se senta no parapeito da janela de Cima, o ar salgado pinica seu nariz. Em algum lugar lá fora, o sino dos ventos canta em saudação.
Era uma vez duas irmãs na Sala de Estar de Dois Andares.
Existia a Irmã de Cima—
A cuidadora de plantas,
E criaturas anciãs,
Seu coração repleto de ternura.
Existia a Irmã Debaixo
A aventureira,
Seu espírito
Uma libélula a pairar.
Degraus de azulejos brancos conectavam os dois andares,
que existiam como reflexos um o do outro.
Representando o meio________________o patamar adornado em mosaicos
se distinguia em seu papel diplomático.
As paredes na Sala de Estar de Dois Andares, eram vazias em sua imensidão.
Até que um dia, um quadro se instalou na parede do patamar.
O acrílico em tela em tons escuros de marrom, cinza e ocre,
capturavam perfeitamente um menino chorando.
Aparentando uns cinco anos, o menino se via cercado por uma penumbra
que o engolia– criando uma confusão visual,
onde roupa e plano de fundo eram indistinguíveis
Porém, os olhos não falhavam em captar o
Cachecol exagerado tomando posse de seu pescoço.
Fora da Sala de Estar de Dois Andares, o mundo
caia
n’um
abismo
se emaranhando com um oceano infinito.
Anos atras, quando a sala de cima
Era apenas um berçário, Irmã de Baixo
Não havia se materializado ainda
Então, o andar de cima era tudo.
Irmã de Cima cresceu isolada e solitária
Então, um quadro foi escolhido para lhe fazer companhia.
Ela imaginava terras encantadas,
Cheia de castelos e cachoeiras
Cercadas de terras verdejantes
Onde borboletas e vaga-lumes dançavam alegres.
Entretanto, teve que se contentar com a pintura do Menino Chorando.
(Calafrios correm na espinha da Irmã de Baixo com a memória)
Quando o Menino Chorando
Se acomodou na parede, Irmã De Cima
Ouviu um barulho, um ruído misterioso
Ela se encolheu embaixo das cobertas, suando repentinamente
Seu corpo imóvel feito estátua. Sua mandíbula
Travou de tanto que rangia de medo.
Seus dedes doíam por segurar as cobertas
tão ferozmente em volta de si
como se estivesse criando uma manta de invisibilidade.
Na calada da noite
Irmã de Cima ouviu o som inconfundível
De uma criança chorando.
Sua garganta se fechou,
seu peito apertou no auge do pânico.
Em seu inferno embaixo das cobertas
A Sala de Cima parecia estar em chamas.
As noites seguintes foram puro tormento
Infligidos pelo pranto sem fim do menino
Irmã de Cima sabia que o terror não era um
filamento de sua mente solitária. O menino sussurrava
nas noites de lua prateada– fique comigo
Sua voz lenta e sombria.
Ele berrava como acometido de uma dor– cuide de mim
Nas noites privadas de luar.
Certa de que tal suplicações a levariam a loucura
Irmã de Cima prometeu nunca deixar sua sala.
Promessa fácil de cumprir. Em seu medo
de invocar a ira do Menino Chorando, Irmã de Cima
se dispôs a cuidar do quadro. A jura
transformou a mesma em refém
de sua própria promessa.
Consequentemente, Irmã de Cima bastava ter
O fragmento de um desejo
Um sussurro de esperança
Qualquer coisa que levasse
Seu coração a estremecer
Para que as súplicas dele recomeçassem.
Em sua solidão, a promessa foi sem consequência.
Atē que em uma manhã de céu dourado
o sino da porta anunciou uma chegada.
Não tendo nunca descido, Irmã de Cima
Não tinha certeza do que fazer. Curiosa,
Ela espiou em silêncio. Seu olhar desceu os degraus
Pausando
Para um interlúdio no patamar.
Seus olhos correram escada abaixo
Onde um ser habitava a sala.
Seu coração ameaçou sair do peito.
– Olá Irmã, eu estou aqui finalmente.
Veio a voz jovial da Irmã De Baixo.
– Irma, que alegria!
Finalmente não estou mais só, Irmã de Cima cogitou.
Imediatamente se arrependendo da transgressão
Que poderia causar a retaliação do
Menino Chorando, onde seus olhos dilatados,
congelados em choro observava tudo.
Irmã de Cima reverteu o olhar
Uma agonia crescendo na profundeza do estomago.
–Irmã, venha me conhecer,
Vamos lá fora colher bromélias
Beber de sua água adocicada como mel– uma oferenda
Esperando nossa degustação.
Irmã de Cima congelou em incerteza
Nunca, nem uma vez, ela havia se
aventurado
pisando
abaixo
do quinto
degrau
E por lá ela permaneceu.
Para Irmã de Baixo, o patamar
Era como o horizonte,
alcançável apenas com o olhar.
Para a Irmã de Cima, o patamar
Era uma plataforma imensa
Ela sonhava em ultrapassar algum dia
Porém, esse sentimento era novo
Na maior parte de sua vida, não havia desejo
para descer os degraus esplendorosos.
Envergonhada de sua covardice
Irmã de Cima não teve outra escolha
Mas dizer a verdade.
–Meu sonho é de te abraçar,
Você, por quem eu esperei todo este tempo
Irmã querida
–Venha, meu acalento te espera.
–Impossível. Veja
Existe uma maldição
–Maldição? Irmã de Baixo perguntou
Intrigada e ao mesmo tempo curiosa
Pois ela era admiradora de
Contos macabros. –Me diga irmã,
De onde vem tal maldição? Tenho certeza que juntas
Conseguiremos quebrá-la.
–Minha irmã, meu amor por ti precede sua existência
No há jeito, esta maldição mora nas paredes
–Você é mais forte que seus medos. Vamos,
estou te esperando.
–Eu não consigo.
–Me conte, mas seja breve,
estou inquieta para segurar suas mãos...e tomar um sol.
Irmã de Baixo espiou o mundo acontecendo porta afora.
Suspirando, ela subiu até o quinto degrau e se sentou.
–Bem, se você insiste.
Existem muitas lendas que cercam
O Quadro do Menino Chorando.
Dizem que o pintor estava na rua da miséria
E para se recuperar fez um trato com o diabo.
Se o demônio conjurado concedesse o pintor
Criatividade infinita, o mesmo
daria sua alma infeliz como pagamento.
Pouco tempo depois do trato, o tal pintor
foi atacado de uma inventividade tão forte
que seu corpo mal podia conter.
Porém, ao invés de dar sua alma como tratado
Acredita-se que o pintor astuto
Encontrou um orfanato na Espanha
onde uma guerra devastava tudo por onde passava.
No orfanato, vinte e sete pequenos órfãos
Choravam pelos pais que nunca retornariam.
Quando quadros foram completados
O orfanado desapareceu em chamas,
Sem deixar vestígio de crianças.
Irmã de Cima acreditava piamente nesta história
Acreditava tão intensamente, que a simples ideia
De se aventurar para baixo
Poderia quebrar sua promessa
E fazer com que a maldição
tomasse conta de sua vida.
–Que história mais horrenda.
Irmã de Baixo olhou pela janela
Os pássaros cantarolavam banhados em sol.
Após um momento ela disse
–Você se julga debilitada pelo medo?
Nada, apenas o silencio como resposta. –Irmã?
eu estou aqui, e juntas conseguiremos superar qualquer coisa.
–Eu tenho tanto para doar. E mesmo assim,
parece que tudo acaba na parede.
A sala de cima é meu refúgio.
É tudo que eu tenho. Eu não posso
arriscar. E se eu sair e não conseguir mais voltar?
Sua voz trêmula afogada nas lágrimas que desciam na sua face.
Irmã de Baixo absorvia em silêncio
Ponderando o causo que ouvira. Se a história
fosse verídica, um sacrifico era necessário.
Existia um preço a pagar, com a vida talvez?
–Me diga Irmã, me ajude a entender?
Irmã de Cima chorava em silêncio, mas nada dizia
Enquanto observava o quadro, com raiva nos olhos.
O sacrifício era renunciar a si mesma
Dar vida a um novo eu, um sacrifício que envolveria
morte
e renascimento.
Porém, Irmã de Cima não sabia
em que forma, propósito ou circunstância.
No pior dos casos
Abandonar seu lugar, inundaria
a Sala de Dois Andares
de medo–seu medo
se transferiria para a paredes
e cubículos vazios
Entre lugares escuros
E câmeras escondidas
Entre os pilares e fundação
Vazando aos poucos
Enfraquecendo lentamente
a estrutura
E com o tempo, a Sala de Dois Andares
Se contorceria com os ventos vorazes
Assobiando versos de desespero
Perseguindo a Irmã de Cima.
Ela poderia até se libertar,
poderia até aprender a viver com liberdade,
Ver um mundo que ela nunca perdeu tempo
Imaginando. A não ser pelas elocubrações da Irmã.
O sacrifício seria realizado.
Sem a presença acalentadora da Irmã de Cima
O Menino Chorando criaria um alvoroço sem fim
Seu desespero sem limites. A alma da Sala de Dois Andares
um fantasma a solta, atravessaria os
oceanos, procurando por familiaridade
A Sala de Dois Andares, um universo
preso dentro de uma galáxia, comprimido
entro mundos e estrelas
entraria em
c ol a p so.
Se Irmã de Cima abandonasse seu domínio,
A Sala de Dois Andares retornaria ao nada
Em um processo de decomposição
pedra–pau–poeira
Se desmanchando em sua ausência. O ar,
uma mistura feita de podridão e pó
aos poucos se desintegrando
tudo isso por causa de sue egoísmo
O suspiro sincronizado das irmãs
Se abraçaram no patamar.
Irmã de Baixo sonhava em abraçar sua gêmea
Com a mesma intensidade que seu corpo
a impulsionava para explorar o mundo
além do abismo.
Ela gritou em frustração
Para Irmã de Baixo era uma questão de degraus
Seria o tal sacrífico, verdade? Se perguntava.
Enquanto as noites se transformavam em dia
E os dias se permutavam em noite
Irmã de Baixo percebeu que a espera doía.
–Talvez você possa explorar o mundo e me trazer tesouros! –
A sugestão rolou escada abaixo.
–Aonde? –Irmã de Baixo perguntou da sua cadeira de palha.
–Através do oceano. Eu ouço eles sussurrem seu nome.
Sussurram canções inacabadas que só você pode cantar.
–Não posso te deixar aqui. Seu fardo é muito pesado.
–Eu me contentarei em saber que você existe.
Sua vida, imensa o suficiente para nós duas.
–Irmã, a jornada poderá ser mais longa que os anos possam contar.
–Va sem hesitar. Va agora. Va e me traga tesouros.
No crepúsculo, criaturas da penumbra cantam em antecipação à noite. Suspirando, a Irmã do Andar de Baixo olha pela janela em direção ao oceano sem fim. Com a partida da Irmã do Andar de Cima, quem poderá dizer que houve, de fato, um sacrifício?
Uma vez existiram duas irmãs, na Sala de Estar de Dois Andares.